quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

CEM ANOS ÀS AVESSAS

Cem anos às avessas
Por Antonio Paulo Faria - 17/01/2012
Segue uma retrospectiva crítica da escalada brasileira dos últimos 100 anos. Em vários países, o desenvolvimento da escalada se deu devido a muita bravura, fama, ego, decepção, brigas, etc. Aqui, no Brasil, além de tudo isso, começamos de uma forma meio torta, mas evoluimos assim mesmo, como uma árvore torta do cerrado, que acaba se adaptando e dando certo.

Comemorações estranhas. E por falar em árvore, o que alguns cismam em comemorar erroneamente como o início da escalada brasileira e, por seguinte, seu centenário, Os Cinco de Teresópolis escalaram o Dedo de Deus em 1912 de uma forma muito esquisita do ponto de vista técnico, não querendo diminuir de forma alguma essa enorme façanha, mesmo porque eles não eram “escaladores”. Quando não havia chaminé e surgia algum lance difícil, um subia no ombro do outro para ganhar altura, ou usavam tronco de árvore que rebocavam montanha acima. A “técnica” mambembe de usar tronco ou bambu nas primeiras ascenções foi usada por muitos escaladores até a década de 1960, ou seja, até meio século depois! Talvez a primeira ascenção da Torre do Livro em 1898, nas Agulhas Negras, tenha sido feita num melhor estilo. Aliás, brasileiros que nunca ouviram falar de alpinismo na época, ou muito antes, já escalavam costões técnicos descalços e sem equipamentos de segurança, mas não sabiam que “escalavam”. 

O Rio de Janeiro é o centro mais importante de escalada do país. A escalada brasileira se desenvolveu principalmente nas montanhas, paredes e falésias cariocas e influenciou o resto do país. Entretanto, hoje a escalada se desenvolve de forma independente em vários estados brasileiros, porque formaram culturas próprias, o que é excelente. Mas até os erros feitos pelos cariocas foram copiados pelos escaladores de outros estados, como por exemplo, o termo “abertura de temporada”, que, por sua vez, foi copiado dos países temperados. E parece não ter sido feito por escaladores entusiasmados e sim por escaladores de ocasião e bebedores de cerveja, que estão sempre procurando justificativas para não escalar, ou arrumando desculpas para não acordar cedo para escalar na sombra, em época de verão. Outros usam a desculpa da inconveniência de correr o risco de pegar uma chuvinha na parede, enquanto que nas montanhas alpinas é normal pegar verdadeiras tempestades em qualquer época do ano. Tente explicar essa frescura e esse termo usado no Rio de Janeiro para os escaladores canadenses, ingleses ou japoneses. E nem vou falar de russos ou poloneses, porque ai vai ser frescura mesmo! Ou seja, no Brasil, se escala o ano inteiro. Na verdade, a “abertura de temporada” no Rio de Janeiro teve como embrião encontros anuais à fantasia, em meados da década de 1980, que eram divertidíssimas. Participei de um evento subindo o Costão do Pão de Açúcar fantasiado de árabe, com turbante e tudo, às 11h da manhã e sob um sol infernal. Nos anos de 1990 esta atividade foi substituída pela “abertura de temporada”, mas sem fantasias. Entretanto, o título correto deveria ser Encontro Anual de Montanhistas ou Encontro Anual de Escaladores. O que começou como uma brincadeira, hoje faz parte do calendário oficial da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Tirando o nome equivocado, o resto é motivo de orgulho dos escaladores cariocas, o que foi um ganho importantíssimo. 

As associações. Em vários países, o montanhismo evoluiu graças aos clubes, associações e federações, a exemplo do Alpine Club fundado na Inglaterra em 1857, e do Club Alpin Français, criado em 1874, que fizeram desses países potências escaladoras e exploradoras nos séculos 19 e 20. No nosso caso, bem... Somente o Estado do Rio de Janeiro chegou a contar com 11 clubes. O primeiro carioca foi fundado em 1919, os outros (não todos) foram surgindo em função de brigas e dissidências, como se naquela época houvesse muitos milhares de associados. E existiam rivalidades entre essas pequeníssimas agremiações, que foi terminar apenas algum tempo atrás, quando a escalada passou a ser feita predominantemente fora delas. Obviamente, o Brasil não chegou a ser nenhuma potência escaladora por causa disso, mas se não fossem os clubes do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, o montanhismo nacional não seria o que é. Hoje há vários clubes novos, associações e federações em outros estados, e uma confederação nacional, que estão levando o montanhismo brasileiro a um nível de organização nunca visto antes. Entretanto, geralmente quem escala muito não liga para organização e nem ajuda, alguns até se autodenominam “anarquistas”, mas reclamam quando são prejudicados. E você sabe por que reclamam? Protestam pela a falta de organização! 

Na tentativa de organizar o montanhismo e a escalada nacional, foram criadas as federações estaduais Femerj, Femesp e a Fepam, para depois formar a Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada, a CBME, todas baseadas nos clubes e nas associações. No ano 2000 foi criada a Federação de Esportes de Montanha do Rio de Janeiro (Femerj), mas o processo foi iniciado sem muita pretenção a partir de 1993, quase por acaso, e deslanchou graças a uma lista de discussão na internet em 1999, conhecida na época como Interclubes. Mas, hoje, esta federação tem outro nome, mais apropriado: Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro. Porém, o início é sempre tortuoso. Ora, uma federação de esportes de montanha deveria incluir também: mountain bike, esqui e voo livre, além de outras atividades. Devido a diversos problemas e reclamações surgidos em função do nome original, mudou-se acertadamente para evitar mais encrencas e acabou servindo de modelo para as organizações que surgiram depois, em outros estados. Ou seja, resolveu-se tratar apenas do que entendemos bem: montanhismo e escalada. Entretanto, durante os anos 1970 existiu a Fmerj, precursora da Femerj, mas que não deu certo devido a problemas políticos. E assim começamos – sempre do jeito mais difícil. Depois, vamos dando nossos jeitinhos e remendando o que sai errado. O brasileiro realmente é criativo, imagine se fosse também organizado?

A hierarquia das associações também é algo interessante. Enquanto os clubes possuem sedes próprias, bens e até funcionários, a confederação e as federações são organizações quase virtuais. Recentemente, o American Alpine Club me procurou porque queria fazer um convite oficial à Femerj, mas, para isso, essa entidade teria de ter endereço fixo. Mas não tem!

Sistema de graduação e “conquistas”. O sistema de classificação brasileiro de escalada é uma salada. No início, devido à influência europeia, copiávamos a classificação da União Internacional de Associações de Alpinismo, a UIAA, que ia do I ao VI+. Porém, no lugar do sinal “+”, usamos sup, abreviação de superior. Isso durou até 1982. Posteriormente, foram surgindo escaladas mais difíceis e resolvemos, por isso, usar parte da classificação francesa, que vai do 1 ao 9, mas com as letras a, b e c e o sinal “+” intermediando a partir do sexto grau – 6a, 6a+, 6b, 6b+, 6c , 6c+, 7ª, e por aí vai. Mas, fizemos isso a partir do sétimo grau e não adotamos o “+”, ficando assim: V, Vsup, VI, VIsup, VIIa, VIIb, VIIc, VIIIa. Mas, inovamos, dando aqui a graduação média da escalada seguida do grau do lance mais difícil. 


Também adicionamos o grau de exposição, de E1 (muito seguro) a E5 (suicida), que foi baseado numa tentativa errada de copiar o complicado sistema inglês. Alguns queriam colocar até o E7. Mas se no E5, se o sujeito cair “tá morto”, porque ir além disso? E se não bastasse, colocamos também o tempo de duração da escalada: D1 (uma hora) a D4 (dois dias ou mais). O resultado ficou algo do tipo: D3 5 VIIb E2. E assim nasceu o nosso sistema, que surgiu de adições após adições, sem planejamento algum. Funciona bem, mas se você conhece a história, pode ficar em dúvida. Ou seja, comumente as coisas aqui vão surgindo e evoluindo ao acaso, pelo menos podemos dizer que temos o nosso próprio sistema de graduar escaladas, enquanto o resto do mundo, exceto Austrália e Inglaterra, usa ou o sistema norte-americano ou o francês. Nós misturamos tudo e ainda mudamos algumas coisas. 

E continuamos a “conquistar” vias de escalada e montanhas. A palavra “conquistar” não pega bem na escalada. Isso não foi culpa dos escaladores e sim de editores de revistas e livros. Parece ter surgido com a primeira ascenção do Everest em 1953. O coronel John Hunt, que liderava a expedição, ficou irado por terem usado tal palavra e disse: “Nós não conquistamos nada, nós subimos”. O verbo conquistar (conquer) caiu em desuso no montanhismo internacional, mas nós continuamos a usar. Ora, ninguém conquista escalada ou montanha porque elas não lutam contra você. Conquistamos batalhas, campeonatos, ação na justiça. Até mulher se conquista, se essa te der muito trabalho se fazendo de difícil. Mas, não se conquista montanhas e escaladas. E a mídia brasileira, inclusive revistas de aventura, continua dizendo que fulano conquistou o Everest, 50 anos após a primeira ascenção depois que milhares de pessoas já terem feito o mesmo. Pior ainda é quando citam o Aconcágua, o Pão de Açúcar e outras montanhas. 

Proteções fixas brasileiras. Já vi muitos estrangeiros ficarem horrorizados com o grampo ou o P brasileiro, inclusive porque alguns, mal batidos e enferrujados, ficam centímetros para fora da rocha. Mas a situação melhorou. O nosso grampo também foi ideia importada da Europa no início do século 20. Porém, os europeus evoluíram padronizando esse tipo de proteção fixa. Mas aqui... Até duas décadas atrás você tinha que pedir para um ferreiro fazer o seu próprio grampo, e cada um fazia do jeito que queria. Existe uma quantidade enorme de grampos diferentes e com dimensões das mais variadas. Atualmente, é possível encontrar em uma única via clássica do Rio de Janeiro até quatro tipos de grampos diferentes, alguns excessivamente grandes e horríveis. Hoje, pelo menos, existem alguns fabricantes que seguem um mesmo molde de dimensões reduzidas. Estimo que foram fixados cerca de 200 mil grampos nas escaladas brasileiras e poucos são os relatos de acidentes. Quanto aos de aço inox, que alguns temem, apenas dois quebraram até hoje. O grampo brasileiro pode ser desajeitado ou feio para alguns, mas tem sido confiável e muito prático na hora do rapel. Falta apenas padronizar para evitar essa bagunça. Se eu fosse cristão, diria que Deus é brasileiro, mas como sou ateu, digo que o aço brasileiro é muito bom, porque tem muitas escaladas no Rio de Janeiro com grampos batidos há 20, 30, 40 e até 50 anos que continuam ótimos. Se você procurar bem, vai achar grampos colocados em 1940. 

Evolução inversa. Muitos brasileiros aprendem a escalar em vias esportivas de oitavo grau, para depois evoluir para um... para um.. quarto grau! É inacreditável. Conheço muitos escaladores e escaladoras que fazem isso porque aprenderam a escalar com amigos e não com profissionais ou escaladores com uma formação ampla. Vão à mesma via ao longo de 80, 100 dias. Alguns conseguem decorar cada movimento, ao ponto de dar até nome a uma minúscula agarra. Poucos conseguem subir essas vias sem queda, mas não conseguem subir qualquer outra do mesmo nível. Não conseguindo, tentam uma de sétimo grau, não conseguindo também, tentam outra de sexto. Ora, passam o maior veneno para guiar um quarto grau clássico. Desiludidos pela monotonia ou pelo cansaço, ou param de escalar ou viram escaladores de ocasião. Duas décadas atrás tínhamos algumas vias de oitavo e nono graus, não havia opções para quem quisesse escalar nesse nível, mas hoje existem muitas. Ficar indo à mesma escalada durante um, dois ou mais anos. Como autor, se eu pudesse cobrar um real por pessoa a cada entrada na via Crux Com Certeza (IXb), na Barrinha (Rio de Janeiro), eu ganharia algum dinheiro. Tem gente que deveria me pagar quase 500 reais – e foram centenas delas desde o ano 2000, quando foi aberta. Esta é uma situação comum em vários outros estados. No Brasil, são poucos os escaladores que treinam para escalar de primeira e sem queda (à vista), vias próximas do seu limite físico.

Pensando nisso, muitos escaladores abandonam o Brasil para viver no exterior, na esperança de poder escalar mais. E entre eles, foram vários dos melhores escaladores nacionais. Mas, para escalar mais, principalmente num país estrangeiro, é preciso ter dinheiro para se manter. E para isso é preciso trabalhar. Porém, para ter emprego num país estranho... Concluindo, trabalha-se muito e falta tempo para escalar. O sonho vira pesadelo. Esta é uma falsa ideia criada em função da perfomance dos escaladores franceses, espanhóis, americanos etc. Mas, na França, como exemplo, existe o “vale-vagabundo” – escaladores franceses “desempregados” recebem salário. O mesmo ocorre em alguns outros países ricos, mas imigrantes não recebem nada, e tem de trabalhar duro. Lembro-me de um colega que era estudante de direito e foi trabalhar como pedreiro na Austrália, para fazer dinheiro e escalar mais. Ele ficava tão cançado que, nos dias de folga, queria descansar. Quem foi na pretenção de escalar mais e elevar a performance ou parou de escalar, ou escala menos que escalava no Brasil, ou quer voltar desesperadamente para o paraíso brasileiro. São raros os casos de sucesso. 

Finalizando, este é um resumo crítico da escalada brasileira nos últimos 100 anos. Vamos ver o que vai acontecer daqui para frente. É difícil prever, mas, se nos basearmos no que aconteceu nos últimos 10 anos, teremos um futuro promissor, mas precisamos ainda desentortar algumas mancadas. Temos de continuar sendo escaladores criativos, mas um pouco mais organizados e atuantes, para não deixar que fechem nossas áreas de escaladas.

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